DOI: https://doi.org/10.34069/AI/2025.85.01.1
Volume 14 - Issue 85: 9-20 / January, 2025
How to Cite:
Campos de Araújo, F., Carvalho da Silva, A., & Lopes Simonian, L.T. (2025). O saber-fazer interdisciplinar: uma perspectiva sobre a atividade ceramista do bairro do Paracuri, Icoraci, Amazônia. Amazonia Investiga, 14(85), 9-20. https://doi.org/10.34069/AI/2025.85.01.1
O saber-fazer interdisciplinar: uma perspectiva sobre a atividade ceramista do bairro do Paracuri, Icoraci, Amazônia
The interdisciplinary know-how: A perspective on ceramic activity in the Paracuri neighborhood, Icoraci, Amazonia
Received: September 23, 2024 Accepted: December 11, 2024
Written by:
Fernanda Campos de Araújo
https://orcid.org/0000-0001-9805-5285
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável no Trópico Úmido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA)/Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Brasil. WoS Researcher ID: MCK-6204-2025 - Email: fernandacamposa@hotmail.com
Amanda Carvalho da Silva
https://orcid.org/0009-0002-7774-7615
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável no Trópico Úmido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA)/ Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Brasil. WoS Researcher ID: MEO-2709-2025 - Email: amandasfurtado@gmail.com
Ligia Terezinha Lopes Simonian
https://orcid.org/0000-0001-6690-7244
Professora Ph. D. pela Universidade da Cidade de Nova Iorque (CUNY), integra o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA)/ Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Brasil. Email: simonianl@gmail.com
Resumo
No Distrito de Icoaraci – administrado pelo município de Belém – no bairro do Paracuri é realizada a reprodução artesanal e ancestral da cerâmica. As etapas de produção da cerâmica em Icoaraci, incorporam uma extensa cadeia de conhecimentos, dessa maneira o objetivo do trabalho é discutir a interdisciplinaridade no saber-fazer da atividade de ceramistas do bairro do Paracuri. Para isso, o trabalho foi realizado com base na visita técnica realizada na região, na qual foi acompanhada pelo método olhar, ouvir e escrever e por uma extensa revisão de literatura sobre o tema. Isso possibilitou identificar que a produção de objetos cerâmicos sofreu inúmeros processos de modificação ao longo dos anos e apesar dessas modificações, ainda é um processo de trocas de conhecimentos de geração em geração, transmitidos pela oralidade. Estes conhecimentos são complexos e, portanto, interdisciplinares, começam desde a coleta da matéria prima, havendo necessidade de um conhecimento sobre solos, até a etapa final, com a aplicação e fabricação de tintas e produção de ferramentas.
Palavras-chave: Cerâmica, Ancestral, Interdisciplinaridade, Produção Artesanal, Icoraci.
Abstract
In the district of Icoaraci, administered by the municipality of Belém, the Paracuri neighborhood is a significant center for the ancestral and artisanal production of ceramics. The creation of these pieces follows a process that involves an extensive chain of knowledge. Therefore, this study aims to analyze the interdisciplinarity present in the know-how of Paracuri’s ceramists. The research was conducted through a technical visit to the region, employing the method of observation, listening, and written recording, complemented by an extensive literature review on the subject. The findings reveal that ceramic production has undergone various transformations over time; however, it remains a process of intergenerational knowledge transmission, primarily through oral tradition. These complex and interdisciplinary skills range from the collection of raw materials, which requires knowledge of soils, to the manufacture and application of dyes, as well as the production of tools.
Keywords: Ceramics, Ancestral, Interdisciplinarity, Artisanal Production, Icoaraci
Introdução
No Distrito de Icoaraci, administrado pelo município de Belém, no bairro do Paracuri, é realizada a reprodução artesanal e ancestral da cerâmica. A cerâmica aqui compreendida não diz respeito à Indústria Cerâmica, àquela destinada à fabricação de tijolos, pisos, dentre outros, com seus altos lucros e participação no PIB (Produto Interno Bruto) do país (Bustamante & Bressiani, 2000). Mas sim a cerâmica de produção em baixa escala como se depreende de Prous (2005), feita por pequenas parcelas da população que mantém vivo os saberes tradicionais de suas comunidades, a qual está presente desde antes da colonização do território que hoje se chama Brasil e presentes em registros arqueológicos.
Souza (2023) chama atenção pro fato de Icoraci apresentar sérios problemas sociais e econômicos, visíveis principalmente quando se analisam os dados do bairro do Paracuri. A autora destaca ainda que este bairro apresenta a menor renda per capita média, com R$ 305,73 (trezentos e cinco reais, e setenta e três centavos) do Distrito Administrativo de Icoaraci, e em se tratando do Índice de Desenvolvimento Humano municipal (IDH), com cerca de 0,62, considerado o mais baixo, comparado aos outros bairros da cidade.
Esses dados refletem a desvalorização da cultura tradicional e ancestral, desta atividade complexa cujos saberes-fazeres que compreendem a produção cerâmica são fruto de uma construção comunitária, em que indivíduos com diferentes níveis de conhecimento se reúnem para ensinar ou aprender, especialmente dentre unidades familiares, mantendo assim viva a tradição da região. Isso é a resistência de um povo, que apesar do pouco reconhecimento da atividade, permanecem vivos e mantendo a tradição - que frequentemente tenta ser replicada em alguns contextos empresariais.
Pensar em produções artesanais nos faz entrever a importância do saber e do fazer humano, os quais são reflexo da interpretação da natureza e a expressividade dos pensamentos (Leão & Farias, 2023). O modo de produção que respeita o tempo da natureza vai perdendo espaço no mundo moderno, que prioriza produção em larga escala ou invés de uma peça feita artesanalmente. Shiva (2003) aponta esse fenomeno como consequencia de um sistema que transforma a natureza e a sociedade gerando desigualdade e dominação, não concebendo outras formas de saber e assim deslegitimam outras profissões, sobretudo as que tem em sua base os saberes tradicionais, os quais assumem status de “primitivo” e “anticientífico”.
No entanto, os conhecimentos necessários e adquiridos para realização dessa atividade de produção ceramica são complexos e interdisciplinares, uma vez que cada artesão possui e precisa empregar ampla cognição ao executar cada peça. No entendimento de Leis (2011), a interdisciplinaridade é um processo de resolução de problemas complexos, que integra visões disciplinares diversas para construção de uma perspectiva mais abrangente. Segundo Souza (2023) estes artesãos possuem linguagem, técnicas, arte, conhecimentos, crenças, organização social, econômica e política. Assim, ao partir-se de Castro (2019), compreende-se que a prática da interdisciplinaridade consiste em criar uma base para produzir outras possibilidades ao conhecimento, e estimular o exercício de inversão do olhar, ou seja, reconhecer a diversidade social, étnica e de saberes presentes na região.
A produção do bairro do Paracuri iniciou-se com a produção de ceramica utilitária e marajoara, mas essa atividade se recria cotidianamente, transformada ao longo do tempo em arte própria da região, assumindo outros significados a medida em que é produzida. As pessoas não apenas criam, mas também se constituem na sua cultura (i)material e vinculam-se a ela, construindo suas relações sociais em torno dela. Souza (2023) reflete sobre isso e conclui que estes objetos ou artesanato ou arte são impregnados de um caráter simbólico que instrumentaliza a expressão da identidade destes grupos sociais.
Portanto a desvalorização dos saberes-fazeres das famílias ceramistas se constitui como uma perda de uma cultura. Os saberes e fazeres dos artesãos de Icoaraci expressam nas memórias marcas identitárias localmente amazônicas que emergem na interação com a natureza, e suas existências na arte cerâmica deste modo de vida. Assim, conforme explica Shiva (2003, p. 15) “o desaparecimento da diversidade corresponde ao desaparecimento de alternativas”, ou seja, quando não é pensada a diversidade de ecossistemas, sociedades, culturas, perpetua-se o silenciamento, apagamento e exclusão de toda uma população. E pensar de maneira a homogeneizar uma população é uma ameaça a vida.
Assim, a fim de contribuir com a difusão e valorização dos conhecimentos tradicionais amazonidas, o objetivo do trabalho é discutir a complexa interdisciplinaridade presente no saber-fazer da atividade de ceramistas do bairro do Paracuri. Para isso a principal fonte de dados são os saberes dos próprios mestres no ofício e arte ceramista atuantes no bairro do Paracuri. Tais saberes têm que ser valorizados e protegidos a fim de garantir esse patrimônio preservado às gerações futuras.
Por uma abordagem metodológica
O Distrito de Icoaraci localiza-se a 20 km da cidade de Belém. E está situado entre a baía do Guajará e o rio Paracuri (Figura 1), o que configura essa área com grande disponibilidade de argila, sendo a cultura local voltada predominantemente para a atividade ceramista. Mas como se verá adiante, essa matéria prima antes precisa passar por um processo de limpeza.
Figura 1. Localização do rio Paracuri
Fonte: Souza, 2019, p. 15.
O trabalho foi realizado a partir da visita técnica feita no bairro do Paracuri, no dia 17 de maio de 2024. Nesse momento, percorreu-se parte do Circuito Interativo do Patrimônio Cerâmico do Paracuri. E visitou-se o Liceu do Paracuri, as Olarias do Mestre Jones, Espanhol e Marivaldo Arte Cerâmica. Nesse momento, foi empregado o método proposto pelo antropólogo de Oliveira (1996): olhar, ouvir e escrever. Segundo de Oliveira (1996), “[...] esses atos estão previamente comprometidos com o próprio horizonte da disciplina, onde olhar, ouvir e escrever estão desde sempre sintonizados com o propósito de la, possibilitando que se obtenha um panorama fiel sobre a comunidade”.
Além disso, com consentimento dos envolvidos foram produzidas fotografias durante a visita, a fim de garantir a visualização do processo de produção das cerâmicas. A partir de Simonian (2007),o uso de imagens nos registros do conhecimento contribui significativamente no sentido de identificar, analisar e entender o imaginário, as sensações e mesmo as realidades materiais. As contribuições da documentação fotográfica quanto ao ambiente, populações e culturas ainda no decorrer do século XIX tornaram-se fundamentais enquanto documento e imagens com possibilidades múltiplas de análise.
Ainda fez-se uma extensa revisão de literatura relevante sobre o tema. Isso possibilitou a construção do debate acerca dos saberes e fazeres dos ceramistas e a interdisciplinaridade a partir de teorias e autores que são referencia sobre o tema pesquisado, o que conferiu credibilidade e objetividade no desenvolvimento do trabalho.
Revisão de literatura
No processo de expansão do distrito de Icoaraci, o bairro do Paracuri foi ocupado predominantemente por famílias oriundas do arquipélago do Marajó, composto por pessoas de baixa renda (Alcântara et al., 2014). A área de expansão ocorreu, principalmente, em direção às baixadas, onde a argila é abundante. Como se vê em Santos (2012), a opção deles por essa área veio de uma antiga tradição em se trabalhar com esse tipo de matéria prima e pela facilidade que se tinha em encontrar jazidas de argila às margens dos rios Paracuri e Livramento (Figura 1).
De acordo com dos Santos (2012) a tradição de trabalhar com argila nesta região remonta ao século XIX quando Icoaraci era uma fazenda controlada pela Ordem dos Padres Carmelitas Calçados que possuíam uma olaria às margens do Igarapé Paracuri. Nesse período e como posto por Santos (2011), eram produzidos tijolos e outros utensílios semelhantes para construção de casas, que eram levados à Belém por via fluvial, por tanto os artesãos já tinham familiaridade com os modos de fazer objetos cerâmicos.
Nesse momento, a tradição ceramista da localidade também tem em seu início a produção de peças lisas e utilitárias. Por volta da década de 1950, houve a inserção da cultura “Marajoara” (Gomes et. al, 2019; Xavier, 2006). A cerâmica de Icoaraci foi uma fusão da cerâmica local e da cerâmica marajoara. Segundo Linhares (2010), o serigrafista Antônio Farias Vieira – mais conhecido como mestre “Cabeludo” – foi o precursor na mudança da cerâmica de Icoaraci. Mestre “Cabeludo” maravilhado com os traços e grafismos vistos no livro “Na Planície Amazônica” de Raymundo Moraes, começou-se a reproduzir os traços marajoaras na fabricação de suas peças cerâmicas, dando assim, um toque artístico nas peças.
Velhos ou novos objetos, a cerâmica de Icoaraci sobrevive ou sobreviveu a tudo isso. Xavier (2006) ressalta que as novas produções revelam práticas e ideias adquiridas via inúmeras instituições, mas que continuam estabelecendo ligação com o passado. Para esse mesmo autor, o estudo das tradições inventadas é interessante pois permite perceber o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social. As novas produções do Distrito possibilitam perceber as modificações e inovações dos artesãos, pois são eles que produzem e se organizam através das constantes mudanças.
Neste ponto, importa saber que é nessa realidade que se deu início a formação de uma cadeia de artesãos, que há décadas formam e reforçam o poder da identidade cultural do Parcuri. Atualmente, no entendimento de Leão e Farias (2023) e de Lima Vieira, Alves e Pontes (2016), combinam-se traços da história indígena regional com inovação artística, isso fruto da originalidade criativa das artesãs e dos artesãos do Polo Ceramista de Icoaraci. O trabalho com a cerâmica é realizado prioritariamente em grupos familiares.
O artesanato local é a principal ou única atividade que garante o sustento das unidades familiares de Paracuri envolvidas com esta produção e parte do lucro das vendas depende diretamente do comércio local e do turismo no estado (Garvão, 2021). A produção de artefatos de cerâmica utilitária e da cultura indígena é diária e a arte marajoara “ganhou o mundo” pelas mãos dos artesãos de Icoaraci.
Nesse cenário, Potiguar et al., (2009) explicam que o mercado turístico ainda se mantém como principal consumidor desta cultura, por considerá-la exótica, mas contribuem ainda para resguardar, ainda que modificados, a identidade étnica e cultural daqueles que os fabricam. O consumo do artesanato amazônico como um produto do mercado, seja pelo turismo ou população local, fideliza um grupo de consumidores que são admiradores não só de um produto, mas de um conceito cultural. (Garvão, 2021). Por isso o turismo assume um importante papel vida das familias do Paracuri.
No trabalho de Potiguar et al., (2009) os artesão destacaram a importância do turista na valoração da produção artesanal do Paracuri, quando comparada aos próprios paraenses. Segundo Garvão (2021) e Potiguar et al., (2009) o incentivo o alcance dos turistas tem relação com a inclusão do Paracuri nos pacotes turísticos de visitação da cidade. Destaca-se mais recentemente a ação do governo municipal com a criação e inauguração do Ecomuseu que conta com o Circuito Interativo do Patrimônio Cerâmico do Paracuri, sendo está mais uma tentativa de fortalecer o mercado local e valorizar a cultura tradicional do Paracuri.
De acordo com Moreira Pinto, P., & Lopes Simonian (2015) o turismo é fato e um fenômeno típico da modernidade. Por isso, a partir de pesquisas científicas rigorosas, o turismo ajuda a resolver problemas sociais, demonstrando a possibilidade de utilizar novas contribuições teórico-metodológicas, que possibilitem reflexões para além da abordagem economicista em que geralmente é tratado o turismo (Moreira Pinto, & Lopes Simonian, 2015). Pois essa atividade é fruto do acúmulo de saberes transmitidos por gerações, os artesãos detêm o conhecimento sobre as técnicas de extração e manipulação de matérias-primas variadas, transformando-as em objetos, criando e recriando a sua própria identidade e cultura.
O saber fazer interdisciplinar dos ceramistas
Nos caminhos percorridos no bairro do Paracuri, foi possível observar a cultura local e inúmeras pessoas trabalhando com argila nas portas de suas casas. Nesse percurso, buscava- se identificar os saberes presentes nessa atividade e a sua perspectiva interdisciplinar. Como afirma Raynaut (2014), a interdisciplinaridade possibilita entender questões do mundo que não se podem encaixar em domínios e categorias fechadas, De fato, ela está presente desde os tempos pré-históricos como por exemplo, na agricultura, onde os agricultores possuíam uma combinação de grande variedade de conhecimentos para realizar sua atividade.
Nesse sentido, a produção cerâmica é, assim como a atividade agrícola, um processo que as trabalhadoras e os trabalhadores do setor incorporam nas suas práticas uma pluralidade de conhecimentos, sendo aqui considerada uma atividade interdisciplinar. Ou seja, envolve a integração e a colaboração entre diferentes áreas do conhecimento para resolver problemas complexos e promover uma compreensão mais integrada de um determinado problema (Leis, 2011). Assim, essa abordagem transcende as barreiras tradicionais entre disciplinas, permitindo que métodos, teorias e dados de diferentes campos se combinem de maneira sinérgica.
A produção cerâmica desenvolvida pelas artesãs e pelos artesãos é ancestral e, portanto, se baseia nas técnicas de produção fruto de um conhecimento tradicional repassado geração para geração, via oralidade, transversalizada por um amplo conhecimento de diferentes áreas. Geração é entendida como o lugar em que dois tempos diferentes são sincronizados – o do curso da vida e o da experiência histórica. De modo que e a partir de Vieira, Reis e Santana (2021), o tempo biográfico e o tempo histórico fundem-se e transformam-se criando uma geração social em constantes relações e (re)configurações.
A autora Nascimento (2017) explica que as mestras e os mestres artesãos incorporam os saberes carismático, circunstancial, comunicacional, criativo, educacional, histórico-cultural, técnico e trans-local (Quadro 1). A autora descreve que esses conhecimentos são concebidos por vezes como “habilidades” (fazer), comportando-se como “atitudes” (ser). No entanto, estes são conhecimentos e/ou sensibilidades que tais mestres desenvolvem para a gestão das diversas demandas que seu metiér exige.
Quadro 1.
Saberes na maestria artesanal
A partir desse quadro adaptad de Nascimento (2017), é possível reconhecer a ampla variedade de conhecimentos reunidos pelos mestres artesãos ceramistas. Ao longo de sua vida incorporam habilidades de gerenciamento da produção, professores, comunicadores, além de desenvolverem sua habilidade enquanto artistas e profissionais técnicos. Posto isso, para Tavares (2012) é preciso reconhecer que o conhecimento tradicional é fruto de uma lógica complexa, que envolve processos sofisticados de construção e reconstrução, impensáveis sem uma atividade intelectual consciente.
Esse pequeno quadro já sistematiza como os conhecimentos em torno da cadeia criativa da cerâmica são arraigados de conhecimentos, configurando os saberes dos mestres artesãos como interdisciplinares. Segundo Tavares (2012), por meio desse processo, as artesãs e os artesãos expressam uma reflexão do mundo, construída por sua sensibilidade, conhecimento das técnicas e pelas relações sociais estabelecidas na produção. Assim, aqui apontaremos pelos caminhos percorridos no bairro do Paracuri no qual foi possível observar o cotidiano da região e perceber os conhecimentos empíricos dos mestres oleiros e como estes podem ser concebidos como interdisciplinares.
O processo cerâmico tradicionalmente engloba: aquisição da matéria-prima, beneficiamento e tratamento da argila, manufatura do objeto cerâmico e secagem, queima, acabamento final e embalagem (Xavier, 2006; Silva do Rosario et al., 2018). A cerâmica de Icoaraci se estabeleceu não apenas como mercadoria, mas como parte da cultura local. Num cenário onde o simbólico é um capital a cada dia mais valorizado, Nascimento (2017) explica que o artesanato não é só produção/produto, é também história, memória, identidade e tem valor imaterial, tendo suas referências culturais e saberes e fazeres tradicionais como principal diferenciador.
Fotografia 1. Amassador de argila.
O mestre Jones – primeira parada do itinerário – faz o beneficiamento do barro. Ele coleta a argila in natura e trabalha nela, com um amassador (Fotografia 1). Esse equipamento auxilia na remoção de galhos, folhas e outros tipos de impurezas, para que ela fique adequada à comercialização para outros artesãos que irão fabricar peças cerâmicas (Fotografia 2). À esquerda, têm-se folhas, galhos, raízes e outros materiais retirados no processo de beneficiamento da argila e à direita têm-se blocos de argila já beneficiados.
Fotografia 2. À esquerda impurezas e à direita blocos de argila já beneficiados.
Fonte: Acervo pessoal das autoras.
O mestre Jones explicou ainda como diferenciar uma argila de boa procedência daquela de má qualidade, na fotografia 3, ele mostra e explica que esse trata-se de um material de má qualidade (Fotografia 3). De acordo com o mestre, o barro precisa ser retirado de posições específicas, geralmente mais profundas, das barreiras para que possa ser moldado e ir ao forno. O barro ideal ao ser aquecido com o próprio calor do corpo humano fica mais maleável e fácil de trabalhar, enquanto aquele de má qualidade se quebra em contato com as mãos, sendo mais rígido, tornando a moldagem difícil e com altas chances de rachar as peças durante a queima no forno.
Fotografia 3. Argila de má qualidade.
Fonte: Acervo pessoal das autoras.
A partir das narrativas do senhor Jones, observou-se o conhecimento sobre as propriedades físico-químicas do solo. Os principais atributos físico-químicos associados ao solo são: textura, cor, plasticidade, adesividade, densidade, porosidade, permeabilidade, estrutura, capacidade de compactação, capacidade de água disponível, Matéria Orgânica, teor de Nutrientes, entre outras (Pereira, 2019). Esses artesãos têm um conhecimento empírico dessas propriedades e ao manusear o material ele está testando todas essas características e definindo o que pode ou não ser empregado na confecção de objetos cerâmicos.
Sociedades imersas em ambientes naturais utilizam uma metarracionalidade para compreender e explicar o mundo, uma ciência sensível e primordial (Silva do Rosario et al., 2018). Pois segundo Lévi-Strauss (1989), o saber tradicional se pauta pela “lógica do sensível”, que valoriza a experiência direta e a percepção sensorial. Na Olaria do Espanhol, especialista em peças utilitárias, comandada atualmente por Mestre Ciro Croelhas, outros aspectos da fabricação das peças são revelados. Nesse local e conforme a Fotografia 4, foi possível observar os artesãos trabalhando em um torno, preparando as peças utilitárias.
Fotografia 4. Artesão oleiro moldando peça cerâmica em torno manual.
Fonte: Acervo pessoal das autoras.
Essa etapa exige muita habilidade do oleiro, que controla com os pés e as mãos o giro do torno e molde da peça confeccionada. Este é um fazer que somente é adquirido na prática, o qual segundo eles, aprenderam desde criança. E após a moldagem das peças em torno, elas passam por um processo de secagem inicial, para que uma parte da água presente na matéria prima evapore por processos naturais (Fotografia 5). Apenas após esse primeiro procedimento é que as peças vão para o forno, num outro método de secagem (Fotografia 6), para que a água restante seja completamente evaporada, tornando a peça resistente e durável.
Fotografia 5. Secagem das peças cerámicas.
Fonte: Acervo pessoal das autoras.
Fotografia 6. Forno para queima das peças.
Fonte: Acervo pessoal das autoras.
De acordo com Mestre Ciro, depois da secagem inicial ainda há água que ele chamou de “molecular” dentro dos objetos e está precisa evaporar no forno. Esse é aquecido gradativamente até por volta de 800ºC num processo que leva, em média, 24h para ser completado. O mestre destacou a primazia da condução térmica, pela qual os sólidos transferem calor através de movimentações moleculares.
Isso indica que os oleiros demonstram ter adquirido conhecimentos sobre física para garantir uma cerâmica de boa qualidade, resistente e durável. Sobretudo na olaria do Espanhol, a qual somente produz cerâmica utilitária e, portanto, o rigor pela durabilidade e resistência das peças é maior. Essa expertise, edificada sobre tradições e observações empíricas, assegura a eficiência no processo cerâmico incorporando conceitos de condução, convecção e radiação.
O Mestre explicou que a partir de processos de experimentação testou diferentes temperaturas para entender o processo de queima das peças cerâmicas. Ele testou elevar a temperatura do forno para 1000°C a fim de obter maior velocidade no processo de queima das peças, o que resultou em peças com rachaduras. O mesmo acontece quando se aquece mais rápido o forno (ao alimentar com mais velocidade), as peças quebram e o trabalho feito se perde.
Percebe-se que o conhecimento sobre termodinâmica é presente em todo o processo de produção dos objetos cerâmicos, os mestres com sua abordagem detalhada e adaptativa, exemplificam a aplicação desses conhecimentos, maximizando a durabilidade e desempenho das peças. Dentro dessa matriz térmica, o ceramista, alinhando-se com a termodinâmica, manipula e controla variáveis associadas à transferência de calor.
Nos termos de Silva do Rosario et al., (2018), os mestres artesãos aplicam conhecimentos sobre transferência de calor, expansão térmica e princípios de temperatura para metamorfosear a argila em artefatos cerâmicos. Ao guiar-se por sentidos afinados e por experiências acumuladas, o ceramista determina a energia adequada e a disposição das peças no forno. Em sequência à queima no forno, as peças passam para o processo de pintura com pigmentos naturais e, por fim, envernizamento.
Na olaria do Mestre Marivaldo, os mesmos métodos são empregados, entretanto os processos são relativamente mais demorados uma vez que a especialidade desta olaria é a reprodução de peças arqueológicas da Amazônia. A mesma demonstra conhecimento extenso sobre arqueologia, história e cultura locais, uma jornada por saberes que começa antes mesmo da fabricação das peças. Aliado a este conhecimento, há também um conhecimento extenso sobre pigmentos naturais para realizar a pintura das peças com cores diferentes e um método de pintura para realizar o “envelhecimento” de certas réplicas arqueológicas.
Os artesão de icoraci, sobretudo os que estão incluidos Circuito Interativo do Patrimônio Cerâmico do Paracuri, dominam ainda um conhecimento de mercado e marketing. A característica distintiva das comunicações comerciais é o facto de transmitirem informações não ordinárias, mas economicamente importantes e significativas sobre as propriedades e características dos bens, o que permite vendê-los melhor. Desse modo, ao final da produção das peças ceramicas os artesão tem um produto final unico, marcado de regionalidade e ancestralidade, atraindo inumeros compradores.
Ser um artesão ceramista, para além de uma profissão, significa cultivar um vínculo específico com a terra e com o território. Isso é passado de geração em geração a partir de seus modos tradicionais de saber-fazer que permeiam o cotidiano desses sujeitos. A cultura cerâmica do Paracuri é ancestral e ao longo dos anos os mestres ceramistas reinvindicaram uma pluralidade de conhecimentos, ou seja, suas práticas são a materialização da interdisciplinaridade. Esse fenômeno interdisciplinar presentes no saber-fazer pode ser um dos fatores que contribuiu para a resistência dessa atividade até o presente.
Conclusão
A formação histórica do distrito de Icoaraci está vinculada desde o princípio à produção cerâmica. Ao ter-se em vista que a cultura é fruto de relações sociais, está em constante movimento e transformação, fato observado nos processos que compreende a cadeia produtiva e criativa da confecção de cerâmicas, especificamente no bairro do Paracuri. A produção cerâmica que anteriormente produzia essencialmente objetos utilitários, jarras, vasilhas, potes alguidares, passou a incorporar outras técnicas e produzir cerâmica marajoara. Apesar desses movimentos, os modos de fazer em sua essência permanecem, mas também foram adaptados, algumas etapas modernizadas.
Neste ponto, conclui-se, portanto, que o processo de produção de cerâmica no bairro do Paracuri é ancestral e o conhecimento desse processo ainda é transmitido de geração em geração pela oralidade. Estes incorporam uma extensa cadeia de conhecimentos, que começam desde a coleta da matéria prima, havendo necessidade de um conhecimento sobre solos, até a etapa final, com a aplicação e fabricação de tintas e produção de ferramentas. Nessa perspectiva e a partir Silva do Rosario, Cardoso e Saraiva (2018), o diálogo entre o mestre do saber e o aprendiz leva os sujeitos a estabelecer relações e a mobilizar processos cognitivos para definir suas concepções de mundo e de processos necessários para existência da comunidade.
Os saberes e fazeres tradicionais são, portanto, em sua essência interdisciplinar. Esse é um processo que se estabelece pela sensibilidade, garantindo a renovação e perpetuação dessa arte. De acordo com Santos e Ristow (2019), conhecimentos tradicionais que pertencem ao ser humano e não ao sujeito ou a uma instituição, são formas de resgatar um conhecimento complexo. Em um mundo complexo é cabal que a interdisciplinaridade emerja como alternativa para tentar entender e compreender diversos aspectos da realidade. A interdisciplinaridade representa o rumo não somente a outras ciências, mas o encontro com outros saberes e deve abrir caminhos necessários e possíveis.
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